Nas entrelinhas: Tocão

terça-feira, março 19, 2013




— Dr. Anselmo, eu...
— Não me chame de doutor. Anselmo, Anselmo.
— Anselmo, eu...
— Tocão.
— Como?
— Meu apelido. Tocão. Me chame de Tocão.
— Tocão.
— Isso. E o seu, qual é?
— O meu... ?
— Apelido.
— Bom, em casa me chamam de Di.
— Di! Maravilha. Viu só? Passamos o ano inteiro trabalhando juntos, nos tratando
de doutor Anselmo e dona Dinorá, e só agora nos conhecemos de verdade. Sabe o
que eu acho, dona Dinorá? Di? Que o apelido é o nome da alma. Sabendo o apelido
de uma pessoa se conhece a sua alma. Tome mais champanhe.
— Não, obrigada. Vou parar. Já bebi demais.
— Tome! Sou eu que estou pagando. Eu não, a firma, mas fui eu que autorizei.
Pedi do melhor. Foi um ano bom para a firma, vamos comemorar com o melhor. O
melhor para todo o mundo. Sabe, Bi?
— Di.
— Hein?
— Doutor Anselmo, Tocão, acho melhor o senhor também parar...
— Eu sei, eu sei. Já estou meio alto. Mas hoje é um dia especial. Um dia de
festa. De contrafernização.
— Confraternização.
— Isso também. E sabe o que eu acho, Bi? Essa história. Nossos nomes. Doutor,
dona, senhor pra cá, senhora pra lá... Sabe o que é isso? Não é formalidade. Não
é respeito. É medo. É uma barreira que construímos em torno da nossa alma, para
ninguém ver lá dentro. Nosso nome verdadeiro é o apelido. O meu, por exemplo.
Sabendo que eu me chamo Tocão, você não sabe tudo a meu respeito? Não sabe
exatamente como eu era, na infância? Como eu sou hoje? Lá dentro?
— É...
— Eu sou gente, Bi.
— Di.
— Pois é. E sabendo o seu apelido, eu sinto que sei tudo sobre você. De agora em
diante, vamos nos chamar pelos apelidos. Todo o mundo na firma. Sem medo. Não
vai mais haver patrões nem empregados. Nem doutores nem donas. De agora em
diante, me chamem todos de Tocão.
— Certo.
— Porque eu sou um Tocão. Entendeu, Bi? O Dr. Anselmo é um disfarce. O que eu
sou mesmo é um Tocão. Me chame de Tocão.
— Tocão.
— Beba mais champanhe.
— Não, não, eu já...
— Bi, escute. Eu quero lhe mostrar o meu umbigo.
— O que é isso, Dr. Anselmo?
— Não, eu faço questão. Vou lhe mostrar o meu umbigo.
— Não precisa, Dr. Anselmo.
— Eu quero lhe mostrar o meu umbigo. Afinal, a senhora me mostrou o seu.
— É a moda. Umbigo de fora. É a moda. Eu não tinha intenção...
— Eu sei. Mas eu ainda não tinha visto o seu umbigo, Bi. Ou, pelo menos, não
tinha prestado atenção nele. E hoje prestei. Foi por isso que eu quis ter esta
conversa. O seu umbigo foi uma espécie de convite para a intimidade. Um convite
para vencer o medo, para romper as barreiras e nos revelarmos um ao outro. Para
nos conhecermos como gente. Pelos nossos apelidos, nossos nomes verdadeiros, não
nossos nomes oficiais. Por favor, segure o meu copo.
— Dr. Anselmo...
— Preciso abrir a camisa.
— Eu preferia que o senhor não...
— Onde está ele? Eu sei que tenho um umbigo. Ou será que deixei em casa? Arrá!
Aqui está ele. Eu lhe apresento. O meu umbigo.
— Muito prazer.
— Você não está olhando.
— Estou, estou.
— O que você acha dele?
— Muito simpático.
— Vamos aproximar nossos umbigos, Bi.
— Não! Por favor, Dr. Anselmo...
— Tocão.
— Por favor, Tocão.
— Para nossos umbigos contrafernizarem! Eles são a prova da nossa humanidade
comum, Bi. Eles vão selar o início de uma nova era dentro da firma, talvez o
início de uma nova era para o mundo. Deixe meu umbigo tocar o seu, Bi. Bi, onde
você vai? Bi!
— O senhor precisa de alguma coisa, Dr. Anselmo?
— Obrigado, dona Márcia. Só preciso de outro copo. E não me chame de doutor.
Olha aí, gente. Contrafernização. Contrafernização!

Sobre o autor: Luis Fernando Veríssimo nasceu em 26 de setembro de 1936 em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. É o escritor que mais vende livros no Brasil. O trabalho do autor também é conhecido na TV, que adaptou para minissérie o livro Comédias da Vida Privada. O programa recebeu o prêmio da crítica como o melhor da TV brasileira.

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2 comentários

  1. Amor estou te seguindo, me dá uma ajudinha? Estou começando agora!
    Segue http://superfofissima.blogspot.com.br/
    Bjos e Obg!

    Amei seu blog <3

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