Nas entrelinhas: Meio desligado.

sábado, junho 15, 2013


Você disse a ele: entra, fica à vontade, não repara na bagunça. O rapaz olhou em volta, está tudo organizado, nos trinques, cheiro de lavanda. Mas você se referia à sua vida.

Era sexta-feira e depois de tantas insinuações e conversinhas alienígenas a fim de não entregar tudo de primeira, vocês finalmente ficaram. Foi estranho vê-lo daquele ângulo, ter os rostos tão próximos, às vezes você abria um olho no meio do beijo com medo de ser pega, porque uma vez leu num manual de internet que quem beija de olhos fechados está apaixonado. E ele não abriu os olhos, boa notícia, ao menos enquanto você estava olhando. Não que você não esteja na mesma, apenas quebrou a regra pra conferir se não estava entrando em mais um barquinho furado num maremoto do Pacífico.

Você achou tudo romântico. Ele é respeitador e você conseguiu segurar o seu desejo acumulado já uns quatro meses, pelas suas contas. Ficaram no sofá. Ficaram só no beijo. Ficaram lendo partes de Revolutionary Road e escutando Cardigans. Ele esticou as pernas. Você jogou as suas por sobre as dele. Ele ficou acariciando suas coxas, não muito acima dos joelhos. E contou que tinha uma banda cover de Roberto Carlos 60/70 quando mais garoto. Você narrou como foi que conseguiu essa cicatriz no queixo (“Naquela época tínhamos um cachorro enorme, eu o amava, mas tivemos que matá-lo.”) Foi tudo bem bacana, com uma ou outra batida de dentes, mais ou menos como você esperou – meses – que fosse. Aí o dia começou a clarear e ele teve de ir pra casa.

No sábado você aproveitou para dormir até mais tarde. Não é muito de uma coisa dessas, mas algo extraordinário aconteceu, então sentiu que merecia esse presente. Fora que adormecida sua mente é mais produtiva, sonhos são mais inofensivos do que pensamentos. Pelas onze, acordou meio onírica (“Certo, isso realmente rolou, mas eu é que não vou ficar o dia todo pensando nele”) e foi buscar comida no Bavária. Como se age no dia seguinte a um episódio que estava anotado para acontecer? Embora não pareça, as etapas de paquera são propositais, há um objetivo claro, menos metafórico, serve para fazer coisas que podem ser detectadas num exame de corpo delito, por exemplo. Mas, e depois? Estamos juntos? Digo, o que nós somos agora? Mais que amigos, bem mais; menos que namorados, bem menos. O quê? O caminho para as respostas parece mais longo. Você sente coceira de perguntar ao tiozinho do caixa, mas acha que suas referências podem ser muito “1962”.

14h47 e seu telefone está ocioso. Tudo bem, a noite foi longa, ele deve estar dormindo ainda. Você tira uma soneca e nada. Sua lógica é bastante simples. Você é quem deve ligar. Foi ele quem saiu daqui pela rua fantasmagórica a caminho de casa. Ele pode nem estar dormindo, pode ter sido sequestrado. Pode ter medido forças com um ônibus e se dado mal. Talvez passado num posto para comprar cigarros e... todo mundo sabe o que acontece com as pessoas que saem para comprar cigarros. Você disca e ele não atende. Dá um tempo e pensa no que está fazendo, enquanto resolve lavar os cabelos. Aí ouve algo, quase escorrega e se estabaca no chão frio. São seus amigos, vai rolar uma trip até a praia, e você não está muito na onda, você os vê todo dia, grande áfrica.

Você telefona de novo e chama até cair. Meia hora depois está desligado. Pronto. Ferrou tudo. Você entendeu o não-recado. Liga para a tchurma e estão na metade da autoestrada, e todos gritando dentro do carro a irrita. Legal, outro sábado sozinha. Você não entende como pode ser reduzida de rainha a um cocô de rato em questão de, o quê, nove horas? Sim, é meio “Drama Queen”, mas é como você está se sentindo. Não dá pra entender, sextas-feiras são propícias a sair com, sei lá, colegas de escritório ou coisa assim. Então, se vocês se viram ontem, hoje que é sábado, um novo encontro fica meio implícito, não? Quem fica com alguém numa sexta, diz que curtiu, e sábado sai por aí a deus-dará se não for pra provocar uma especulação infantil bem-me-quer-mal-me-quer? Tudo bem, domingos são liberados não dar sinal e se desviar de rotas amorosas. É dia da família, do Senhor, de correr maratonas, sei lá. Não dá pra entender.

Liga e dá desligado. Telefona e dá fora da área de cobertura. Liga para a operadora e pergunta qual a diferença entre as duas coisas (“Eu sei moço, mas tipo, ele ainda está no Brasil? Me garante? E será que ele gosta de mim? Não, não dei de primeira. Pois é, também não sei qual é a dele”). Tenta outra vez e dá um barulhinho estranho. É isso aí, ele está com outra. Não dá pra confiar nesses meninos. Menos de um dia e ele já correu para as coxas da primeira vadia qualquer. Você pensou que ele era diferente. Aliás, tem pensado que muita gente é diferente nos últimos tempos. Se toca, não há tanta gente diferente assim, ainda mais disponível, sem obsessão por algum amor passado, ou que não mistura calça riscada na vertical com camisa de listas horizontais.

E vai anoitecendo na cidade. E você não fez nada, além de checar se ele postou algo na rede social. Assistir uma sessão tripla com o Justin Timberlake dublado no Cinemax é o mesmo que nada, só piora a situação, é só um adesivo para sua nicotina. Que vida, hein? É hora de levantar e sacudir os farelos de biscoito recheado, garota. Não deu, não deu. Menos Shania Twain e mais Portishead. Chama uma amiga-topa-tudo no Skype. Vai até a única loja de departamentos que ainda te dá crédito e compra uma nova meia-calça. E sapatos, sapatos sempre funcionam. Um batonzinho a mais não faz mal. Essa será a grande noite do esquecimento. Vodka, fotografias, riso forjado e muito sol nascente na cara, enquanto se sente um lixo. O lado bom é a primeira coisa que ele vai ouvir ao ligar o aparelho: um “Não quer, tem quem queira” em grande estilo. Será a redenção. Babaca.

Desce e pega um Subway. Come o sanduíche com uísque, enquanto passa batom vermelho nos lábios engordurados de frango Teriyaki. Faz a franja com o secador. Termina de pintar o autorretrato em si mesma e pergunta ao espelho se não está carregado demais. Nenhuma resposta. Sorri assim mesmo. Chama o táxi. Passa todas as utilidades de uma bolsa para a outra. Sobe nos saltos. São dez da noite. Ele telefona, o calhorda. Agora é tarde, camarada. Você não atende, vai ver ele não conseguiu nenhum programinha de graça pra hoje. Agora seu passe está valorizado, você está de saída. Ele liga outra vez, enquanto o táxi não chega. Só que agora você já não sabe mais o que pensar. É ele, de novo, pela terceira vez. Quem sabe aconteceu alguma coisa. O sequestro não pode ser totalmente descartado, pode? Foi a senhorita quem pediu um táxi? Espera aí, moço.

– Alô?
– Oi, você por acaso tentou me ligar? Cabeça minha, fui hoje cedo pra casa dos meus pais e esqueci de levar meu carregador. Minha mãe me obrigou a ficar para o café da tarde, e depois tive um momento pai-e-filho enquanto ele consertava os estragos do vendaval no jardim. Enfim, acabei me alongando. Cheguei em casa agora, recém pluguei na tomada.
– Ah.
– Eu estava pensando, você já jantou? Eu estava a fim de sair e comer alguma coisa, o que você acha?
– Você escutou a minha mensagem de voz?
– Não, por quê? Não sei mexer nesses troços, eu sou meio desligado pra essas coisas. Depois você me coloca pra escutar, pode ser?
– É. Ok. Pode ser, sim. Vamos sair.
– Ótimo, ótimo. Estou passando aí em trinta minutos. Estou cheio de fome.
– Eu também. Certo. Estou esperando.

E então você ouve um palavrão do taxista ao mesmo tempo em que sobe desesperadamente as escadas, correndo tirar aquela fantasia de piranha sem rumo.

Sobre o autor: Gabito Nunes nasceu em 1982. Autor de outros quatro livros de crônicas e contos, entre eles A Manhã Seguinte Sempre Chega e Não Sou Mulher de Rosas. Originário da geração de blogs de criação literária, ganhou o prêmio Top Blog de literatura (júris popular e acadêmico) e atualmente escreve o folhetim online Juliete Nunca Mais. Leitor de John Fante, Jack Kerouac, Nick Hornby, Charles Bukowski, Woody Allen, J. D. Salinger, Milan Kundera, Caio Fernando Abreu e Marcelo Rubens Paiva. Ouvinte de Beatles, Bob Dylan, The Smiths, Beck e Radiohead. Escritor de prosa de ficção, Ao Norte de Mim Mesmo é seu primeiro romance. Gabito Nunes nasceu e mora em Porto Alegre/RS.

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