Nas entrelinhas: "Anti-herói"

domingo, outubro 20, 2013


– Eu só queria entender por quê? Como, onde ou, de repente, quem? – ela diz, escorada no umbral da porta, e eu estou sentado na cama, com as mãos tapando o rosto, às vezes cuidando a hora no relógio digital da esquina.
– Isso não importa realmente, importa?
– Você não está mesmo terminando comigo por causa disso, está? Que clichê. Deve existir uma outra.
Deixa eu atualizar você. Há três semanas conheci essa bela garota num bar próximo daqui e logo me apaixonei por suas axilas e todo o resto. Fomos para o apartamento dela, mas não rolou nada de, você sabe, profundo. Apenas dançamos um pouco em cima do sofá e pegamos no sono. Não telefonei no dia seguinte porque não foi preciso – eu ainda estava com ela. Depois de algumas festas, passeios e almoços rápidos, ela me convidou pra fazer par no casamento de uma colega. Enfim, resumindo, essa é a cena: estamos terminando. Muito possivelmente porque eu tive outra das minhas reações alérgicas à monogamia. Adivinha quem é o babaca do enredo, só pra variar? Ponto pra você.
– Eu não sei na verdade – mas eu meio que sei, na verdade. – Sei lá, acho que uma vez peguei minha mãe de calcinha e sutiã, e o acidente acabou contribuindo para algum trauma com intimidade ou algo assim. É caso de terapia, até.
– Lembra aquela vez que chamei sua atenção sobre piadas fora de lugar? Agora é uma boa ocasião para aplicar minha teoria. E que você precisa de um psiquiatra, isso está fora de debate.
Silêncio. É cavalheiro da minha parte deixá-la me insultar. Não vou dizer que não mereço, eu me sei muito bem. Sempre gostei dessas pessoas que dizem logo de cara quem são, talvez por isso meus melhores amigos sejam os mais filhos-da-puta, idiotas, cretinos e honestos. Não sei, com eles aprendi ser mais fácil, antes de qualquer conversa, contar seu nome, seu signo, onde nasceu e seus piores defeitos. Se a pessoa gostar mesmo assim, vai gostar mesmo, verdadeiramente. Ou talvez seja só insegurança.
Só que, por conta disso, eu me afasto das pessoas voluntariamente, antes de jorrar meu fel nelas. Não gosto de falar muito, vivo na informalidade socialmente falando, não telefono para meus pais, sou meio irritado, totalmente individualista, meio ciumento e, ah, tenho uma antologia do Lobão – quer casar comigo? Não sei, não curto muito essa cultura de combate à solidão das grandes capitais, essa sensação de que você está "salvando" alguém. Você deveria se mudar pra cá se tem qualificação e quer um bom emprego, não porque procura um namorado. A cidade de Gramado é que deveria ter um milhão de habitantes.
– Bem, eu espero que você não me odeie – eu digo.
– Não vou te odiar, jamais faria isso. Você não tem culpa de ser retardado.
– Poxa, valeu.
Eu tenho quase trinta, sem filhos, um emprego bom que não dá pro gasto, e na minha parede da sala você encontra aquele pôster com os álbuns do Pink Floyd pintados em bundas femininas sentadas em fileira no muro – essa deve ser a definição dela para "retardado". Quero acreditar nisso e ir embora. Só que aí ela começa a chorar e dizer coisas intercaladamente, do tipo "o amor é a única coisa que termina antes de acabar" ou "no começo, antes de dormirmos juntos, você tinha um olhar silencioso e doce, parecia um cão sem dono, e agora parece só mais um calhorda safado, isso me deixa confusa" ou "o casamento nem é seu pra você surtar, seu imbecil!" e também "nossa, achei que você nunca iria me machucar".
Odeio isso, odeio isso, odeio isso. Odeio quando elas veem qualidades onde não têm. Odeio quando garotas choram. Eu sou a porcaria de um imbecil neurótico e problemático e tudo mais. Ponto. Eu assumo. Agora, decorar esse bolo com uma cobertura de lágrimas é apenas crueldade feminina. Ou vou embora ou então passarei uns seis meses sentindo raiva e desprezo e nojo de mim mesmo. E assim não dá, pois preciso me barbear, às vezes. E quando elas param de chorar, não adianta, ferrou tudo, ela só vai voltar a admirá-lo se você trouxer paz para aquele pessoal da Chechênia.
Eu adoraria dizer que a vida é cheia de encontros, de papos legais e agradáveis, entre outras possibilidades românticas, mas não é. Não há consolo, apenas esperas e incertezas e corações esburacados. A vida não é feita de campos de morangos para sempre, como aquela dos Beatles. Ela é feita, em sua imensa maioria, de cretinos de carteirinha e clubes de risadas mórbidas. Você não precisa andar muito pra achar um. No meu caso é só ajeitar o penteado no retrovisor.
Quando ela disse achar que eu não iria machucá-la, foi como me jogar num rio gelado. Onde estão esses heróis que não machucam as pessoas? Nas novelas, nos livros, no cinema? Se eu pudesse escolher, a coisa seria mais heroica, como esses filmes de vampiros do bem, lindos, românticos, responsáveis, vegetarianos e protetores que elas adoram assistir. Mas não é bem assim, você não aprendeu com o Sr. Marvel? Preste atenção, todo herói tem sua identidade secreta. Só estou querendo dizer que a realidade está mais para, sei lá, "Procurando Nemo". Quero ir pra casa.
Sobre isso de "quem-machuca-quem". Não há muita saída, há? É como duas pessoas que se jogam em queda livre, dividindo o mesmo paraquedas, uma só cordinha. Se alguém achar que está indo rápido demais ou que já estamos meio perto do chão, adianta consultar o outro? Não, você abre a lona e respira. Azar se o parceiro estava curtindo o vento na cara e a paisagem azulada do céu. Eu apenas quero tocar meus pés no chão e sair andando. Alguns têm fobia de altura, o que se pode fazer a respeito?
– Talvez fique um pouco difícil enxergar agora, mas eu meio que salvei você, sabe? – eu jogo panos quentes, e ela solta uma gargalhada irônica e altamente inadequada para os padrões desse tipo de conversa.
– Hã? Você só pode estar brincando. Me salvou de quê?
– De mim. Não é fácil explicar. Eu sou assim, meio morto por dentro. Faço as coisas por empolgação e no outro dia, sei lá. Sou dessas pessoas que ficam procurando as canções no rádio até achar um clássico, algo perfeito para aquele horário do dia, aquele semáforo. A música acaba e eu troco de estação.
– Quer saber? Cale a boca. Eu sei que você está tentando se justificar, mas só está piorando as coisas.
Mais silêncio.
– Acho melhor você sair agora – ela diz.
– Certo. Você tem razão. Não vou dizer "se cuida" e esses troços, mas quero que você fique bem.
Eu me levanto, torcendo para a única marca que fique seja da minha bunda na cama dela, e não por muito tempo. Quase na saída, o cachorrinho chato dela me late irritantemente, intimida a bainha da minha calça, e a coisa fica mais dramática e constrangedora do que já é usualmente, sem esses micro cães-de-guarda gasguitos.
– Vou ficar legal. E você vai sentir minha falta – ainda dá tempo dela dizer.
– Eu sei – ela tem as axilas mais sensuais que eu já vi.
Um dia, sério mesmo, quero gostar tanto de uma garota como eu gosto de, sei lá, de "Come As You Are" do Nirvana ou de sashimi de atum, de vinho do Porto ou das cartas do Burroughs. Quem sabe eu até vá a casamentos de colegas, chás de avós e campeonatos de xadrez de afilhados. Ou então serei sempre essa causa perdida. Num dia eu acordo e sou só um alguém entediado, e no outro somos duas pessoas numa confusão sem tamanho. Não sei salvar ninguém. Mas, como dar uma de herói quando o crime a combater é você mesmo?

Sobre o autor: Gabito Nunes nasceu em 1982. Autor de outros quatro livros de crônicas e contos, entre eles A Manhã Seguinte Sempre Chega e Não Sou Mulher de Rosas. Originário da geração de blogs de criação literária, ganhou o prêmio Top Blog de literatura (júris popular e acadêmico) e atualmente escreve o folhetim online Juliete Nunca Mais. Leitor de John Fante, Jack Kerouac, Nick Hornby, Charles Bukowski, Woody Allen, J. D. Salinger, Milan Kundera, Caio Fernando Abreu e Marcelo Rubens Paiva. Ouvinte de Beatles, Bob Dylan, The Smiths, Beck e Radiohead. Escritor de prosa de ficção, Ao Norte de Mim Mesmo é seu primeiro romance. Gabito Nunes nasceu e mora em Porto Alegre/RS.

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